segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Crônica de uma alma anacrônica

Não era um dia dos mais acalorados nem fazia frio. A brisa esquecera-se de soprar e um sol tímido cedia uns raios não menos modestos, capazes apenas de fornecer a iluminação necessária para que se chamasse de dia e não de noite aquele período diuturno. A previsibilidade com a qual ocorriam os fatos, havia tempos, era mais estarrecedora e insuportavelmente insalubre do que qualquer eventual acidente que viesse a lhe ocorrer; mais mortífera e estagnante do que a própria morte, pensava consigo mesmo Mateu, consternado transeunte em meio a todo aquele automatismo despropositado que o circundava. “E ainda há quem creia que a musa de tudo isso foi a razão!”, murmurava o transeunte solipsista observando desdenhoso o mis en scene composto pela arquitetura simples e retilínea dos grandes prédios, acrescido do movimento das pessoas e automóveis que “enchem de ‘vida’ o bairro”, pensou ironicamente, rindo com escárnio capaz de convencer a si próprio de que nada daquilo valia a pena.

A vida urbana há muito lhe causava asco, mas também nunca havia concordado com nenhum tipo de fuga bucólica. Rejeitava avidamente qualquer possibilidade de esquiva, exercitando seu orgulho incólume diante das adversidades que encontrava ou diante daquelas às quais, quixotescamente, ele próprio erigia. Mas agora os moinhos pareciam demasiado grandes e robustos! Mais ainda: eram moinhos inatingíveis, invencíveis, agora que eram invisíveis! Sentia o jugo extenuante da vida que ele mesmo criou, sem saber como, quando nem por quê... Tampouco almejava saber! Nada mais lhe instigava, nada mais lhe seduzia, de nada(ou do Nada?) queria saber. Sentiu saudades do tempo (não há muito tempo) em que se comprazia com o inexorável exercício da razão, quando, imiscuído em seus mais absortos pensamentos, nem lhe sobrava tempo para perceber os matizes insossos da pintura urbana. Lembrou ainda com um certo saudosismo (apesar de ter sido recentemente) de quando cortejava teorias científicas recém-assimiladas na universidade. Recordou ainda mais ressentidamente de quando vivia seu drama fáustico, de quando, tomado de fervor crítico, resolveu abandonar a universidade em protesto contra o academicismo e o pedantismo científico. Vieram-lhe de imediato na memória os seus diálogos solilóquios, quando costumava brincar com o próprio nome, como se ele fosse uma abreviação quase cabalística: “meu ateu”, “m’ateu”, Mateu! Como se houvessem dois deles conversando entre si, um orgulhoso de ser ou ter o outro. Era também como se fosse uma junção do seu sobrenome (Matos) com seu epíteto à época (Ateu).

Mas, para sua desgraça, nada disso mais fazia sentido. “Tolice!” - tendia assim a repreender qualquer ímpeto que viesse a emergir na sua consciência referente a tais pensamentos acerca do próprio nome ou de qualquer tentativa pueril de se auto-definir, ou de se “auto-enganar”, como considera agora, em retrospecto, esse jogo inócuo. Mas lembrava sempre com certo saudosismo tudo aquilo. “A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles”, pensou penoso, lembrando um trecho que teria lido em qualquer livro ou revista, mas logo tratou de banir da mente também tal pensamento. Não queria mais esse exercício "transcendental". Não queria mais alimentar essa inutilidade que era ter um demônio pessoal (como a Diotima do seu outrora estimado Sócrates), um amigo invisível, um duplo de si mesmo ou qualquer coisa que o valesse. “Isso é como uma droga! Inebriante e aprazível, mas sempre uma fuga da realidade!”, proferiu murmurando para si mesmo, como que querendo se auto-convencer da futilidade das suas antigas viagens com seu interlocutor interior. “Nada real, nada real!”, murmurava em tom não tão baixo quando, de súbito, uma voz baixa de tom escarnecedor, o despertou das suas abstrações:

-Nem um real?! Nem um real!? – interpelava um mendigo que se encontrava deitado na calçada por onde ele agora passava, nitidamente parodiando os murmúrios de Mateu.

-Não tenho! – respondeu Mateu rispidamente, irritado com o escárnio do molambo.

O sujeito pôs-se a rir com um misto de sarcasmo e satisfação, como se a reação de Mateu tivesse valido muito mais do que uma esmola qualquer que este pudesse tê-lo dado. Ria consigo mesmo um riso calmo, mas bem esboçado no rosto sujo enquanto acendia um cigarro sem nem mesmo olhar para Mateu, como se nem o tivesse visto. De fato, não tornaria a dirigir-lhe a palavra se não fosse o próprio Mateu quem, ofendido, voltasse a ter com o mendigo:

-Não tem o que fazer!?

-Estou fumando! E você? O que faz? – respondeu o maltrapilho com tom desafiador.

O ex-estudante pensador foi mais uma vez surpreendido. De imediato, sem querer parecer intimidado ou desconcertado, respondeu:

-Estou andando!

-Não, estás parado – replicou o vagabundo.

-Estaria andando se não tivesse me interrompido!

-Quem pensa, pensa melhor parado. Deveria me agradecer. Não é indicado andar por aí como se estivesse nas nuvens. O concreto dói mais do que pensamentos ruins... Vai que caia em um “buraco de Tales” por aí...

O jovem ouviu aquilo com espanto. Não é nada comum um mendigo ponderar com tanta lucidez, ainda por cima, proferindo conhecimentos filosóficos sobre o episódio de Tales, o filósofo que haveria caído num buraco enquanto andava a contemplar os astros. Perplexo, o jovem lançou-lhe um olhar curioso, analisando suas vestes, como se estivesse querendo se certificar se se tratava de fato de um mendigo ou se seria algum desses boêmios intelectualóides que, por qualquer motivo, se encontrava ali jogado... “Talvez esteja apenas embriagado”, pensou. “Mas está deveras esfarrapado...”

-O homem é aquilo que pensa e não aquilo que veste! – admoestou o mendigo, como se pudesse ler seus pensamentos.

-Que diabos vo...

-Não tem o que fazer?! – interrompeu o mendigo bruscamente qualquer tentativa de fala. – Me dá um trocado e senta, ou então vai-te embora!

-Quem é você? – perguntou Mateu, atônito.

-Eu sou a esfinge contemporânea, excluída socialmente, como não podia deixar de ser! Me decifra ou me dê cifras!

-É um desafio?

-É um desatino!

-O que?

-Quem em nada crê só artista ou louco pode ser.

-Não sou nada disso – retrucou Mateu com certa arrogância.

-Não disse que fosse. Mas só isso lhe é dado ser. Nem religioso nem cientista, se em nada crês. Mas artista sim! Estimas a liberdade, mas ignoras que só existem dois tipos de seres livres: os loucos e os artistas.

-Os vagabundos não? – replicou o jovem com um certo tom irônico.

-E quem disse que há diferença? Os três tipos são a mesmíssima coisa. Enquanto os religiosos e os cientistas, cada um à sua forma, vivem a desatinada busca da verdade, nós, loucos, vagabundos e artistas, não a buscamos, tal qual uma águia não vive em função do céu onde voa. Os religiosos e cientistas nunca viveram de fato um arrebatamento. Um religioso, caso tivesse tido uma experiência mística sequer, abandonaria de imediato qualquer liturgia, abandonaria sem titubear todo o ritual diário moroso e indolente e passaria a ser artista, vagabundo ou, caso não suportasse o fulgor do arrebatamento, enlouqueceria. Mas, ainda assim, seria livre, diferente do que agora o é.

As palavras do molambo ressoavam na mente de Mateu como se fossem proferidas por uma figura de autoridade como ele jamais considerou. Iconoclasta inveterado, passou bom tempo da vida matando ídolos e ícones para, agora, se deter hipnotizado às palavras daquele velho, e isso lhe causava certo incômodo. Mas que velho?! Qual não foi a sua surpresa ao perceber que a figura que lhe falava mal tinha pêlos na face. Como não havia reparado antes? Era um jovem aparentando, no máximo, 14 a 15 anos. Nesse momento sua testa se enrugou, evidenciando explicitamente um misto de surpresa e inconformismo. “Como pode?! Tão jovem, mendigo e tão astuto!” Além do que, como podia ele não ter reparado, durante todo esse tempo, que se tratava de um garoto? “Onde e quando aprendera tudo isso? Há quanto tempo estaria nessa vida?”

-O tempo... – interrompeu o mendigo os seus pensamentos como se pudesse, mais uma vez, lê-los – Quando fores capaz de se desprender dessa razão e dessa lógica, aliás, dessa crono-lógica, só assim serás de fato livre e não sentirás tanto o jugo que agora sentes. Não há nada de imediato! Suas pernas podem andar mais depressa ou mais devagar, mas o sol cruza sempre a abóbada, impassível, numa única velocidade.

Mateu se sentiu verdadeiramente atingido por tais palavras. Era como se tudo o que ele não sabia a respeito de quem ele mesmo era e do que precisava naquele momento estivesse sempre ali naquela esquina, deitada num chão qualquer, no chão cotidiano, por onde pisa sem reparar todos os dias ou em qualquer outro lugar; tão obviamente disposta que se encontrava escondida, posto que o óbvio e o simples sejam o que menos se considera quando se busca uma verdade. E não é outro o motivo pelo qual ela raramente é revelada. Sentiu então um impulso que o levou a aproximar-se, planejando, finalmente, sentar-se ao lado do mendigo, pagar-lhe a indulgência em alguns centavos e continuar a conversa mais intimamente. No entanto, no exato momento em que tornou a virar-se, após ter dado as costas ao molambo, preparando-se para sentar, preocupou-se seriamente. Voltou-se para ele e o que viu foi uma figura esquálida dormindo no chão em sono profundo, como se estivesse ali desfalecida há muitas horas. O jovem sentiu um torpor tomando-lhe o corpo, subindo desde as pernas e fazendo-lhe tremer intensamente. Só podia estar louco! Pôs-se a andar como que fugindo do sentimento que lhe causava tal constatação. “Quanto tempo haveria perdido ali conversando com alguém que nem sequer estava vigil?! Nada daquilo era real!”, pensou Mateu, seriamente consternado, quando, já a certa distância ouviu em tom baixo, porém com a firmeza com que profere uma autoridade:

-Pode mesmo ter sido tudo criação da sua mente. Mas isso não significa que não seja real! Àquele que em nada crê, só é dado criar... Cria-te! Crê em ti! Até breve! – disse o mendigo, despedindo-se gentilmente, esboçando um sorriso prazenteiro e hospitaleiro.

Ainda procurando uma explicação para tudo aquilo, Mateu pôs-se a tentar lembrar de conteúdos que pudessem explicar o ocorrido, mas o torpor era grande ao ponto de deixá-lo inebriado, quase extasiado. Os conceitos apareciam em sua mente com uma profusão incrível e pareciam transitar aleatoriamente. Chronos, Kairós, Partícula, Onda, Física Quântica, Metafísica, Nada! Não mais explicavam, apenas dançavam misturados a muitos outros conceitos numa dança sem lógica e sem razão. Passeavam na sua mente como os transeuntes passavam à sua volta em um ir e vir (ou em um devir) indolente e tudo era profundamente belo e cheio de sentido, embora igualmente desrazoado. O dia lúgubre e sem sol transformou-se numa aquarela profícua, tocando seus sentidos como muitas experiências com alucinógenos nunca o haviam feito. Teve certeza naquele momento que estava vivendo um arrebatamento, algo como um transe místico e a simples estética do que agora via e sentia bastava para sua compreensão, a despeito de qualquer resquício de razão.

Pôde perceber com entusiasmo que aquele mendigo estava sempre a dormir em algum recôndito profundo dele próprio e agora que já conseguia assimilar a sensação inebriante que o tomava, esboçou um riso de canto de boca, sereno e eufórico ao mesmo tempo. Estava louco e isso era uma dádiva! Sabia que logo aquela experiência se reduziria a uma parva lembrança de um fato fortuito e ria também disso. Sentia-se como um astrônomo que avistou, em fração de segundos, um imenso e belo corpo celeste nunca antes visto, mas, sem ter como registrar o fenômeno, também não poderia contar pra ninguém. Primeiro porque não acreditariam, segundo por que lhe faltariam parâmetros para descrever tal visão. Restava a ele, então, desdenhar daquela experiência fugidia. Era o melhor trato que poderia dar-lhe.

-Vai-te! – disse ele, ainda sorrindo, esboçando satisfação no semblante.

Desde então, continuou a praticar a nobre arte do desdém. Agora, porém, acredita-se artista. Aventura-se nos pincéis, nos poemas e nas crônicas, cortejando temas diversos mas sempre aludindo, tácita ou explicitamente, como uma reverência a um eterno mestre, àquele mendigo-vagabundo que sempre foi ele mesmo.

Um comentário:

Paloma Nogueira disse...

Excelente. Me permitiu viajar dentro da minha propria história que se asemelha a de tantos outros...
Muitas vezes evitamos (por medo do desconforto) conversar com o nosso ‘mendigo artista’ que vive dentro de nós mesmos, buscando na falsa realidade um suporte para sustentar ideias outras que imaginamos serem verdadeiras por nos causarem um pseudo bem estar.
Cada dia que passa me surpreendo contigo e percebo que a todo instante renasce um novo homem que muito admiro.